O grupo havia se dividido. Uma parte tentaria ir de ônibus de Punta Arenas à San Sebastian e o outro grupo manteria o planejamento original, ou seja, pegar o ferry boat, descer em Porvenir e ir de bike, por uma estrada de ripio (estrada de cascalho), até San Sebastian (que é fronteira, dividindo Chile e Argentina - Tem a San Sebastian do lado chileno e outra do lado argentino). Este percurso dista 150 km. A previsão inicial seria de dois ou três dias, pois a dureza da viagem deixa todo mundo moído e não é possível fazer percursos muito longos.
Quatro e meia da manhã e já se ouvia movimentos nos quartos. Uma parte da galera indicava certa ansiedade com o novo desafio que estava pela frente. O que será que iríamos encontrar no percurso? Enfrentaríamos frio? Chuva? Ou o temível vento patagônico? Seria uma região habitada, pelo menos com alguns moradores nas fazendas? Ou encontraríamos uma região inóspita como foi Tapi Aike? Nossas energias positivas emanavam para que o tempo fosse não muito frio, sem chuva e, pelo menos, com pouco vento.
O nosso embarque no ferry boat transcorreu bem. Conseguimos pagar o valor de passageiro comum (sem carga), o oceano estava tranquilo, não ventava, fazia pouco frio (15 graus) e o céu estava nublado. Durante a viagem, na travessia do estreito, aproveitamos para tirar fotos e descansar, pois o dia seria pesado.
Chegamos em Porvenir. De cara uma vila muito simpática. Algumas coisinhas, galpões, bares e restaurantes, muitas aves, barcos, cais, pontes... Tudo com um cheiro característico de mar, como uma cidadezinha de beira de praia no Brasil. Comemos alguma coisa enquanto tirávamos fotos dos pinguins que aproveitavam o sol de meio dia, apesar do tempo nublado.
Barriga forrada, pé na estrada. Logo no começo sacamos o lugar incrível que estávamos a pedalar. Percorrermos à beirada da "Baía Inútil", com paisagens incríveis. Havia lagos, muitas aves, animais silvestres (águias pousadas nas estacas, raposas cruzando a estrada, guampaços (lhamas) nos acompanhando...), despenhadeiros, um mar, que é a confluência dos oceanos Pacífico e o Atlântico... As águas do mar estavam calmas e isto dava um toque especial ao nosso pedal, algo bucólico. Pequenas ondas rolavam na beira. Não havia areia na praia, mas sim pedras. A água escura do mar, o friozinho de 10 graus e as aves que cruzavam o céu e emitiam sons era como se decorassem as ensaiadas que margeávamos.
Fizemos um pouco mais de 60 km pelo litoral até aquele momento. Havia muitas subidas e descidas. Não foi um trecho fácil, apesar da boniteza do visual e do astral contagiante. Vivemos, inclusive, momentos difíceis, em relação às intermináveis subidas que enfrentamos. Em contrapartida, era um delírio total quando deslizávamos a 40 ou 50 km/h, descendo as ladeiras, sentindo o vento frio passar nos nossos corpos e curtindo todo o visual. Era, com certeza, um momento que tomávamos fôlego.
Em alguns trechos subíamos tanto que, de lá de cima, onde estávamos, podíamos ver o que estava nas praias. Era também muito perigoso, porque, como a estrada era de ripio (cascalho), havia sempre a possibilidade de derrapagem e, nas partes altas, o despenhadeiro era enorme. Tinha trechos que havia buracos e qualquer vacilo poderia ser literalmente o fim.
E por falar em perigo tivemos uma dupla sorte. Primeiro, foi o companheiro Rafaleo que, por uma questão de segundos, ao lançar seu olhar para um guanaco (lhama) que estava próxima, entrou nas britas, perdeu o controle da bike e caiu. Bateu o joelho. Ficamos muito preocupados. Ele passou um tempo caído no chão e calado. Porém, logo se recuperou. O segundo foi Del, que descendo embalado em uma ladeira (a 35 km /h) foi atravessar uma parte mais fofa da estrada e se desequilibrou. Para evitar o pior, Del se jogou no chão. Tudo não passou de um grande susto. Breve ele estava de boa e de volta ao pedal.
Nosso objetivo era chegar em um cruzamento (entre uma via alternativa é a principal, que conduzia a San Sebastian. Os últimos quilômetros foram terríveis, pois nossas pernas já estavam moídas de tanto subir e descer, mas ainda faltava uma
longa (não íngrime) subida. Chegamos esbaforidos no ponto planejado. Já eram 17h30 e precisávamos logo organizar o acampamento. Como havia uma espécie de ponto de ônibus ou abrigo (já utilizados por outros ciclistas, pois tinha uma série de assinaturas no interior desse abrigo), os caras resolveram dormir lá. Particularmente achei que ficaria apertado para uma quarta pessoa, sobretudo uma pessoa com as minhas proporções. Optei então em montar uma barraca próximo da dormida dos caras. À noite foi muito massa, com uma comidinha deliciosa feita por Alex (arroz temperado, linguiça picante e purê de batata). Tivemos o privilégio de tomar um vinho e depois ainda rolou um cafezinho. Depois de comermos, e ainda degustando um bom vinho chileno, conversamos sobre a vida, sobre nossas histórias... Sabe aqueles papos de ser humano para ser humano, onde, genuinamente, acontece o diálogo? Foi realmente um momento de encontro entre a gente! Para completar, passou um caminhão carregado de pequenas toras de madeiras e Alex, na cara dura, pediu umas duas lascas. Resultado: rolou até fogueira em nosso rancho naquela noite de céu estrelado, de friozinho gostoso e ao son do barulho do mar.
Nossa apreensão durante a noite era com as raposas, pois havia um aviso que dizia para ter cuidado com as mesmas, pois estas costumavam, sorrateiramente, a rasgar os sacos e mochilas a procura de comida. Felizmente não rolou rapada, embora Del tenha dito que viu uma rondando minha barraca durante a noite.
O próximo dia nos aguardava com 90 km pela frente e de estrada com ripio. Em nosso pouso, naquele noite, com os corpos exaustos, mas ainda em êxtase, pensávamos também nos nossos outros companheiros. Como eles estariam? Aonde se encontrariam? Haviam conseguido pegar os ônibus para San Sebastian?
Dormimos, por fim, com aquela sensação sabendo que , se a viagem terminasse ali, já havia valido apenas, principalmente por aquele fabuloso trecho percorrido.
Relato fantástico Marcelo. Vc descreve tão claro que se fecharmos os olhos veremos a paisagem com detalhes. Kkkk oceano, pinguim, raposa, vinho chileno. ....
ResponderExcluirParabéns
Fiquem com Deus
Bjssssss
LuizaRudner
Valeu tia pela força!!!
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