terça-feira, 31 de março de 2015

O nono dia de bike - a viagem da viagem


OBS.
Esta observação deveria estar presente desde o primeiro relatório do pedal. Na verdade é um pedido de desculpas antecipado e uma justificativa pelos prováveis erros de português nos relatos aqui escritos. A  questão é que a missão de escrever na flor dos acontecimentos e revisar se torna praticamente impossível. Então, cara ou caro leitor, tenha compaixão. 



Dormimos em San Sebastían (Chile), na Hosteria La Fronteira. O dono era bem enfezado. O lugarzinho nos fazia lembrar uma cidade fantasma, mas foi o que conseguimos naquele final de tarde, já exaustos de pedalar na estrada "casca grossa (posteriormente soubemos que na aduana argentina, 15 km adiante, aproximadamente, havia uma outra hosteria que aparentava ser melhor). A energia desse lugarejo era ligada às 18h, via gerador, portanto só podíamos tomar banho (água quente) a partir desse horário. Internet só as 20h, no restaurante, mas fechava as 22h, junto com o lugar. Bem, ao menos tivemos um quarto quentinho e uma cama razoável (um quarto com duas beliches ), mas era tudo do que precisávamos. Tivemos uma confortável noite.
Apesar de alguns deleites como vinhos e cama quentinha, além das coisas maravilhosas que víamos, essa vida de aventura ciclística o cotidiano é muito duro. Nos acampamentos e nas pousadas, tínhamos que, interminavelmente, montar e desmontar as bagagens das bikes, dormir sentindo frio, comer purê de batata com sardinha vários dias, acordar cedo e pedalar, fazer comida e pedalar, dormir para descansar e pedalar.
Naquele dia acordamos bem cedo para arrumar as coisas, tomar o café no La Fronteira (literalmente café sem leite e dois pedaços de pão) e pedalar 100 km até a cidade Argentina, Rio Grande. Nossos demais companheiros estavam lá nos esperando (Nilo, Arestides, Chico e Paulo).
Depois que passamos na aduana (saindo do Chile e entrando na Argentina), tivemos pela frente mais uns 20 km de ripio e depois foi o asfalto. O dia estava bom, sem vento, pouco frio e até um sol para nos alegrar.
Pegamos o asfalto e demos um pau legal. A nossa pegada girava em torno de 20 a 25km/h (lembre-se que estávamos em montain bike e não em speed, que estávamos com uma carga aproximada de 35kg e que havia muitas subidas!). 
A chegada à Rio Branco foi emocionante porque estávamos revendo o Oceano Atlântico (estávamos mais em contato com o Pacífico). Além desse aspecto mais simbólico para gente havia também a beleza mesmo do trecho. Subidas encurvadas e ao lado  despenhadeiros que davam para a imensidão do azul marinho. O cheiro do mar, o sal no rosto e os contrastes anis. Tudo isso junto que a iminência de reencontrar os parceiros, dava um gosto especial e uma certa ansiedade ao pedal. Acho que, por isso tudo, a pegada do pedal foi forte.
Entramos na cidade e não sabíamos onde os caras estavam hospedados. Procuramos um local que tivesse acesso à internet para ver as possíveis mensagens que eles haviam enviado ao nosso grupo no WhatsApp (adotamos esse procedimento para nos comunicar em situações como essas). Ao encontramos um posto que tinha Wi-Fi, pegamos a mensagem (com o endereço do Hostel) que Nilo havia postado.
No caminho percebemos que a cidade era animada e pareceria haver uma festa (talvez patriótica, pois Rio Grande foi a principal cidade base na guerra contra a Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas)
Chegamos e encontramos a galera. Abraços e saudações. Passamos a organizar os próximos trajetos e nos inteirar como havia sido os dias para os dois grupos.
Anunciamos que "quebraríamos" a viagem até Ushuaia em três dias, fazendo mais dois acampamentos no caminho e tornando-a menos pesada. Paulo e Nilo se animaram. Arestides declinou e Chico "bateu martelo" que seguiria a decisão do amigo. Os dois tinham resolvido pegar um ônibus e nos aguardar em Ushuaia. 
Esta situação de não termos os oito pedalando juntos, principalmente nos trechos finais, abalou, cada um.
de modo diferente (e também pelo planejamento, para os oito, não ter saído como havia se imaginado).
Arestides, que é o nosso parceiro de 73 anos, o nosso orgulho maior, sentiu dificuldades em pedalar com a bike carregada (certamente mais de 20kg de bagagem ele carregava). Arestides havia tentado duas vezes (ida a Taip Aike e Morro Chico) e não estava se sentido bem por supor que poderia estar atrapalhando os demais.
Paralelo a isso houve as inevitáveis discussões e questionamentos quanto ao planejamento da viagem: um grupo de oito ciclistas e com capacidades diferenciadas seria realmente capaz de fazer o percurso / tempo traçado?  Todos, de um modo ou de outro, se implicaram nesse projeto e com este planejamento, mas por que não pensaram nessas importantes variáveis?! Faltou segurança para membros do grupo? Como se deu a liderança e tomadas de decisões? Tudo estava claro para todos no que diz respeito às dinâmicas dos pedais e dos possíveis desafios!? Há culpados ? Ou todos têm responsabilidades pelo processo da aventura!?
Estas e outras importantes questões perpassaram nas cabeças dos integrantes, sobretudo nesse dia. Embora não se tenha discutido abertamente com todos estas questões, havia um "clima no ar" - talvez pura sabedoria instintiva do grupo, por não ser ainda o momento de expor coletivamente a situação.
Ah! Mas certamente haverá tanto a conversar e mais ainda a ouvir. Sobre isso, algumas coisas fiquei a meditar, principalmente depois de uma caminhada que dei com Nilo em Rio Grande, quando saí com ele para pegar uns pesos argentinos no banco. Dizia Nilo, no seu jeito guru de ser, que, ao bater um papo com Arestides, lembrou do ex-psicanalista e criador da análise corporal, Wilhelm Reich, quando este falava do que era mesmo ser um grande homem. Um grande homem, para Reich, é justamente aquele que se reconhece pequeno, ou seja, que vê seus limites e suas dificuldades. Possivelmente Arestides não estava se sentido bem por não estar conosco e por se sentir, de algum modo, atrapalhando. Não sabe ele, eis algo que precisaria ser dito, que a simples tentativa de pedalar já inspirava todos (realmente fora de sentido e ingenuidade de todos supor que esse pedal ocorresse como fora imaginado nas condições postas para um grupo tão heterogêneo). Não é por menos que a frase mais ouvida no pedal foi: "Sr Arestides quando crescer quero ser igual ao senhor ".
Uma outra coisa que observei e que fiquei deveras impressionado foi com o cuidado e a fidelidade que Chico teve com Arestides. Chico poderia ter feito os trechos finais, mas preferiu acompanhar Sr Arestides em ônibus até Ushuaia. Para Chico, suponho, estar ao lado do amigo era mais importante, além do mais parece que ressignificou a viagem, ou seja, deu outros sentidos.
Diante disso tudo refleti no que cada um aprendeu ou pode aprender e o que leva de lição dessa viagem. E quando falo "dessa viagem" não estou me referindo apenas a viagem de bike, literalmente falando. A viagem, novamente nas palavras de Nilo, é também tudo que acontece no processo, as histórias que rolam, as relações, os dramas, as vivências... A viagem é viagem para outras viagens.







sábado, 28 de março de 2015

O oitavo dia de pedal - ripio casca grossa


No nosso acampamento, depois de 60 km de Porvenir, choveu durante a noite, mas não muito. Porém, fez frio. Como combinamos dos três dormirem no abrigo e eu na barraca, deu espaço suficiente para uma boa acomodação, tanto para Alex, Del e Raffaello, quanto para mim (na barraca). Decisão acertada!
O temor a noite foi com a raposa. Não sei se verdade, mais Del disse que havia uma rondando minha barraca, como já havia falado anteriormente.
Naquele acampamento, o amanhecer no austral foi o verdadeiro astral ! O sol nascendo entre montanhas e o mar de fundo compunham um quadro sensacional, deixando todos muito inspirados para enfrentar os 90 km que nos aguardavam, sem contar a cansativa estrada de ripio.
Para nos dar "sustância", o café da manhã foi caprichado e delicioso. Rolou um café com leite, cuscuz, ovos, queijo e pão. Tudo feito pelo mestre cuca Alex.
A vida simples que vivemos nessa aventura revela o essencial da vida. E uma pergunta que não cessa é "o por que topamos viver tudo isso?". De modo geral as nossas respostas giram em torno de buscar a simplicidade da vida, da essência das coisas, do contato com a natureza, de entendermos que não precisamos de muito para sermos felizes.
O dia prometia. Havia sol, com poucas nuvens e sem vento. Tínhamos 90 km pela frente de ripio, entre subidas e descidas - e isto deveria ser falado, repetido, para entendermos bem claramente o que haveríamos de enfrentar.
E por falar em enfrentar, achava o máximo o modo como meus parceiros encaravam seus pedais. Eu sempre ficava impressionado com a capacidade de pedalar dos meninos. Raffaello, Del e Alex bailavam ao pedalar. Era mesmo muito bonito ficar olhando eles desviarem das pedras, entrarem nas curvas.. era mesmo como se estivessem dançando.
Um outro ponto interessante eram nossas conversas com os bichos na estrada. Não era coisa de doido não, era mesmo curtição. As lhamas, por exemplo, sempre muito curiosas, quando passávamos, emitiam sons. E a gente, para brincar, ficava "boiando" elas. Então os guanacos (lhama), disparavam! Tudo isso era muito divertido e até ajuda a gente a esquecer dos desafios.
Nesta pedalada percebi também que minha performance melhorou, em parte por ter criado mais o hábito. Entretanto, preciso resolver a questão da mesa (colocar uma regulável) e ter um bar end maior (estou forçando muito as mãos e braços). Por enquanto vou levando com o sacrifício. Por exemplo, a cada 10 km tinha que dar uma paradinha porque minha mão adormecia. Na verdade, todas essas adversidades fazem parte da aventura. O importante é ter calma, paciência e foco, sobretudo em uma viagem de longa duração. Aquela frase que diz "estrada longa, passos lentos" é a mais pura verdade. Não adianta se afobar. E por falar nisso, em uma pegada como essas a pessoa pode entrar em desespero se não tomar a calma suficiente devido ao tamanho do deserto e a longa estrada. Falo isso por experiência própria. Por muitas vezes me percebia iniciando uma ansiedade (que pode levar ao desespero) ao pensar no que teria que pedalar ainda e se seria capaz. Esse tipo de pensamento, que eu tinha, só fazia piorar a situação.
Uma estratégia que desenvolvi foi olhar para frente e ter uma ideia do percurso. Depois focar na estrada (sem me preocupar se faltava muito para chegar na curva ou na ladeira, por exemplo). Focar foi a palavra chave.
Apesar de todos esses entendimentos e estratégias, não dirimia a péssima qualidade da estrada nesse trecho. O ripio era casca grossa e com muita "costela de vaca". Não tinha como desviar e como avançar muito. Para piorar, a estrada era muito movimentada, com muitos caminhões e carretas. Tínhamos que redobrar os cuidados. 
Felizmente chegamos bem em
San Sebastian (por volta das 17h30). Cansados, aceitamos a primeira Hosteria que encontramos. Comemos e fomos dormir.




O sétimo dia de pedal - de Porvenir para o que vier

O sétimo dia de pedal

O grupo havia se dividido. Uma parte tentaria ir de ônibus de Punta Arenas à San Sebastian e o outro grupo manteria o planejamento original, ou seja, pegar o ferry boat, descer em Porvenir e ir de bike, por uma estrada de ripio (estrada de cascalho), até San Sebastian (que é fronteira, dividindo Chile e Argentina - Tem a San Sebastian do lado chileno e outra do lado argentino). Este percurso dista 150 km. A previsão inicial seria de dois ou três dias, pois a dureza da viagem deixa todo mundo moído e não é possível fazer percursos muito longos. 
Quatro e meia da manhã e já se ouvia movimentos nos quartos. Uma parte da galera indicava certa ansiedade com o novo desafio que estava pela frente. O que será que iríamos encontrar no percurso? Enfrentaríamos frio? Chuva? Ou o temível vento patagônico? Seria uma região habitada, pelo menos com alguns moradores nas fazendas? Ou encontraríamos uma região inóspita como foi Tapi Aike? Nossas energias positivas emanavam para que o tempo fosse não muito frio, sem chuva e, pelo menos, com pouco vento. 
O nosso embarque no ferry boat transcorreu bem. Conseguimos pagar  o valor de passageiro comum (sem carga), o oceano estava tranquilo, não ventava, fazia pouco frio (15 graus) e o céu estava nublado. Durante a viagem, na travessia do estreito, aproveitamos para tirar fotos e descansar, pois o dia seria pesado.
Chegamos em Porvenir. De cara uma vila muito simpática. Algumas coisinhas, galpões, bares e restaurantes, muitas aves, barcos, cais, pontes... Tudo com um cheiro característico de mar, como uma cidadezinha de beira de praia no Brasil. Comemos alguma coisa enquanto tirávamos fotos dos pinguins que aproveitavam o sol de meio dia, apesar do tempo nublado. 
Barriga forrada, pé na estrada. Logo no começo sacamos o lugar incrível que estávamos a pedalar. Percorrermos à beirada da "Baía Inútil", com paisagens incríveis. Havia  lagos, muitas aves, animais silvestres (águias pousadas nas estacas, raposas cruzando a estrada, guampaços (lhamas) nos acompanhando...), despenhadeiros, um mar, que é a confluência dos oceanos Pacífico e o Atlântico... As águas do mar estavam calmas e isto dava um toque especial ao nosso pedal, algo bucólico. Pequenas ondas rolavam na beira. Não havia areia na praia, mas sim pedras. A água escura do mar, o friozinho de 10 graus e as aves que cruzavam o céu e emitiam sons era como se decorassem as ensaiadas que margeávamos.
Fizemos um pouco mais de 60 km pelo litoral até aquele momento. Havia muitas subidas e descidas. Não foi um trecho fácil, apesar da boniteza do visual e do astral contagiante. Vivemos, inclusive, momentos difíceis, em relação às intermináveis subidas que enfrentamos. Em contrapartida, era um delírio total quando deslizávamos a 40 ou 50 km/h, descendo as ladeiras, sentindo o vento frio passar nos nossos corpos e curtindo todo o visual. Era, com certeza, um momento que tomávamos fôlego.
Em alguns trechos subíamos tanto que, de lá de cima, onde estávamos, podíamos ver o que estava nas praias. Era também muito perigoso, porque, como a estrada era de ripio (cascalho), havia sempre a possibilidade de derrapagem e, nas partes altas, o despenhadeiro era enorme. Tinha trechos que havia buracos e qualquer vacilo poderia ser literalmente o fim.
E por falar em perigo tivemos uma dupla sorte. Primeiro, foi o companheiro Rafaleo que, por uma questão de segundos, ao lançar seu olhar para um guanaco (lhama) que estava próxima, entrou nas britas, perdeu o controle da bike e caiu. Bateu o joelho. Ficamos muito preocupados. Ele passou um tempo caído no chão e calado. Porém, logo se recuperou. O segundo foi Del, que descendo embalado em uma ladeira (a 35 km /h) foi atravessar uma parte mais fofa da estrada e se desequilibrou. Para evitar o pior, Del se jogou no chão. Tudo não passou de um grande susto. Breve ele estava de boa e de volta ao pedal.
Nosso objetivo era chegar em um cruzamento (entre uma via alternativa é a principal, que conduzia a San Sebastian. Os últimos quilômetros foram terríveis, pois nossas pernas já estavam moídas de tanto subir e descer, mas ainda faltava uma
longa (não íngrime) subida. Chegamos esbaforidos no ponto planejado. Já eram 17h30 e precisávamos logo organizar o acampamento. Como havia uma espécie de ponto de ônibus ou abrigo (já utilizados por outros ciclistas, pois tinha uma série de assinaturas no interior desse abrigo), os caras resolveram dormir lá. Particularmente achei que ficaria apertado para uma quarta pessoa, sobretudo uma pessoa com as minhas proporções. Optei então em montar uma barraca próximo da dormida dos caras. À noite foi muito massa, com uma comidinha deliciosa feita por Alex (arroz temperado, linguiça picante e purê de batata). Tivemos o privilégio de tomar um vinho e depois ainda rolou um cafezinho. Depois de comermos, e ainda degustando um bom vinho chileno, conversamos sobre a vida, sobre nossas histórias... Sabe aqueles papos de ser humano para ser humano, onde, genuinamente, acontece o diálogo? Foi realmente um momento de encontro entre a gente! Para completar, passou  um caminhão carregado de pequenas toras de madeiras e Alex, na cara dura, pediu umas duas lascas. Resultado: rolou até fogueira em nosso rancho naquela noite de céu estrelado, de friozinho gostoso e ao son do barulho do mar. 
Nossa apreensão durante a noite era com as raposas, pois havia um aviso que dizia para ter cuidado com as mesmas, pois estas costumavam, sorrateiramente, a rasgar os sacos e mochilas a procura de comida. Felizmente não rolou rapada, embora Del tenha dito que viu uma rondando minha barraca durante a noite.
O próximo dia nos aguardava com 90 km pela frente e de estrada com ripio. Em nosso pouso, naquele noite, com os corpos exaustos, mas ainda em êxtase, pensávamos também nos nossos outros companheiros. Como eles estariam? Aonde se encontrariam? Haviam conseguido pegar os ônibus para San Sebastian?
Dormimos, por fim, com aquela sensação sabendo que , se a viagem terminasse ali, já havia valido apenas, principalmente  por aquele fabuloso trecho percorrido.








quinta-feira, 26 de março de 2015

O sexto dia de pedal

Acordamos bem cedo e ainda estava escuro (o dia clareava por volta das 7h). Tínhamos pela frente 150 km. A ideia era pedalar 45 km e chegar até Vila Tehuelches, comer alguma coisa, nos reabastecer de água e voltarmos à estrada.
Enquanto desarmávamos as barracas e preparávamos alguma coisinha para comer, ouvimos de Alex um monte de impropérios, seguido de risos. Será que Del havia aprontado alguma coisa com ele!? Não, desta vez Del era um anjinho, sentado em um banco, olhando para a cena e se pocando de dar risadas. 
Alex havia bebido urina em um copo que Rafaelo utilizara a noite (como faz muito frio a noite, quase todos usam algo para se aliviar e sem sair da barraca). Na verdade, Alex não imaginou que pudesse ter mijo no copo. E o pior é que antes de beber utilizou um pouquinho daquela "água" para fazer o café da rapaziada.
"Café" tomando, partimos na frente, Chico, Nilo e eu. Como os caras pedalam muito bem, nosso planejamento era adiantar o máximo e nos encontrarmos na Vila Tehuelches. Não teve nem graça, no meio do caminho fomos alcançados.
O pedal transcorreu tranquilo, só não pela chuva que pegamos no trecho final. A paisagem não era das mais bonitas, pois o que reinavam eram fazendas de ovelha com a mesma vegetação e relevo (vegetação rasteira e pequenas subidas e descidas).
Nessas estradas patagônicas o gostoso de pedalar é porque raramente passa carro, a estrada é muito boa e as paisagens são geralmente muito bonitas. Tudo isso torna ainda mais propício para as nossas meditações. 
Emparelhado com Nilo, este me falou que a onda do ciclismo é algo solitário. Penso que seja algo paradoxal, ou seja, o ciclismo é um esporte social, de grupo, de contato, mas também de introspecção, de mergulho em si. 
A experiência de pedalar, nessa dimensão mais solitária, nos proporciona pensar e refletir sobre um monte de coisas. Entretanto, chega um momento que os pensamentos cessam. Isto pode ser identificado como ascese da meditação. Somos levados, "mergulhamos em nós mesmos", flutuamos a um estado de paz, de dissolução do eu, onde o que impera é somente o ofegar, as próprias pedaladas, o zunido da bIke, a velocidade e a sensação de liberdade.
Chegamos na Vila Tehuelches por volta das 11h30. Como todos estavam muito cansados e restavam ainda 100km, resolvemos pegar um ônibus até Punta Arenas. 
Ao chegar nessa bela cidade (uma das maiores da região), reencontramos Arestides. Fizemos um pequeno tour pela city, resolvemos questões financeiras e fomos comer alguma coisa decente.
Durante o jantar conversamos sobre nossa viajem, propósitos e condições  do grupo. Uma parte do pessoal (Nilo, Chico, Paulo e Arestides) resolveu tentar pegar um ônibus até San Sebastian (Argentina) e uma outra parte (Del, Rafaelo, Alex e eu) optou por seguir de bike, atravessando o Estreito de Magalhães por balsa (como estava previsto). A ideia seria nos encontrar em San Sebastian.
Nessas nossas ponderações entendemos que estamos aqui, acima de tudo, para curtir. A bike para gente é prazer, amizade e elevação humana. Não estamos competindo e nem querendo mostrar nada para ninguém. Cada um tomou a decisão que melhor lhe coube, de maneira coletiva e respeitosa. Estamos felizes por estar aqui e, cada um a seu jeito, está levando dessa aventura iguarias fantásticas em termos de lembranças e aprendizagens. 







quarta-feira, 25 de março de 2015

O quinto dia de pedalada

Saímos de Puerto Natales em direção a Punta Arenas. 250 km nos esperava. Sabíamos que não daria para fazer em apenas uma puxada. A sugestão foi acampar em um lugarzinho chamado Morro Chico. Na verdade esse lugar, ao lado de um morrinho que dá nome, se resume em um posto policial, um boteco (que estava fechada) e umas casas e galpões abandonados.

A largada de Puerto Natales se deu as 9h30 e foi acompanhada de ansiedade e expectativa de alguns em conseguir ou não, pelo menos era isso que Chico e eu sentíamos (isto por causa da nossa desistência na terceira pedalada). 

O dia havia amanhecido com muita neblina e isso indicara um sinal, pois seria um dia de pouco vento e menos frio. Na verdade, todo o pedal foi, do ponto de vista climatológico, muito bom. Não tinha vento e fez até calor (possivelmente 18 a 20 graus).

A estrada (fizemos esse pedal no asfalto, "ruta 9") era basicamente plano, com subidas e descidas suaves. O que pegou mesmo foi o cansaço acumulado da viagem.

Um primeiro grupo partiu na frente e um outro formado por Nilo, Rafaelo, Arestides, Chico e eu, pedalavam no fundão. Nilo e Rafaelo adiantaram um pouquinho. Arestides sentiu a pegada (apesar de pedalar muito bem, sentiu as seqüências de pedais e a bike muito pesada com a carga). Conseguiu carona e foi para Punta Atenas nos aguardar.

O acampamento transcorreu bem e fomos nos recolher cedo, pois o outro dia seria, nas palavras de Del, Nilo e Alex, "doideira", "só vem quem tem negócio" e "sinistro", respectivamente.

Ao estarmos nas nossas barracas, procurávamos descansar para os 150km que nos esperavam. Ao mesmo tempo, colocávamos nossas cabeças  nos sacos de dormir e refletíamos sobre as nossas histórias. Afinal, cada um de nós, nessa aventura, tinha suas histórias, seus dilemas, suas crises, seus limites, suas fraquezas, suas preocupações...

Sobre as minhas histórias, desse dia, teve a ver com o cuidado que tento cultivar. Para essas viagem alguns dos meus entes recomendou que eu buscasse o cuidado. Isto me remete a pensar o quanto, algumas vezes, sou negligente comigo. Será que tem a ver com a pulsão de morte, na visão psicanalíticas? De toda sorte, nessa viagem tenho optado por me cuidar e estar vivo. 

Uma outra coisa das minhas histórias é p quanto eu (e também as pessoas em geral) carregam e guardam coisas desnecessárias. Guardar coisas desnecessárias (coisas matérias e subjetivas) faz com que a vida fique pesada. 
Fiquei pensando sobre isso depois de ler uma passagem do livro Diário de uma bicicleta, mas também porque terminei trazendo algumas coisas desnecessárias, como roupas demais, o que tornou a carga da bike muito pesada. E isto rola na vida da gente em termos subjetivos também. O quanto carregamos coisas desnecessárias para a nossa vida? O quanto carregamos raiva, magoa, culpa...? Acho que uma boa pergunta é se temos reais necessidades dessas coisas. Se não temos (e provavelmente não a temos) porque carregamos?' Com certeza nossas vidas ficam, desnecessariamente, pesadas. 
Minha lição: da próxima vez levarei menos roupas. 
Todos dormiram em paz naquela noite ao som de Bob Marley, "concrete jungle", uma cortesia do Chico.





segunda-feira, 23 de março de 2015

Nossas bikes - vida, movimento e equilíbrio

Esses dias que intercalaram o quarto pedal para o próximo, o quinto, foram   considerados "férias". Ficamos na agradabilíssima cidade de Puerto Natales (Chile), em um
"Hostal", não menos agradável (Picada do Carlitos). As funcionárias são muito simpáticas, é bem localizado e tem um preço abordável (uma média de R$ 80,00 a diária$. A cidade é cheia de bares e restaurantes e há muitas lojas para compras.
Durante essas férias demos roler na cidade, a pé e de bike, tiramos muitas fotos e alguns do grupo foram visitar Las Torres de Paines, um esplendoroso parque, repleto de montanhas, com lagos, cachoeiras, geleiras, florestas, animais silvestres...
Durante esses dias, também em Puerto Natales, aproveitei para terminar a leitura do livro "Diário de uma bicicleta", de Fabrício Maurício. O livro fala da relação do cara com sua bike. É um livro massa e que mistura fantasia com realidade. O cara conversa com a bike! O livro traz também uma série de reflexões sobre a vida. 
Acho que inspirado nessa leitura, comecei a pensar na minha relação com magrela.
Em casa, tenho guardada uma antiga bike. É uma MTB Caloi Aluminium. Penso em prepará-la para uso urbano, sobretudo para ir ao trabalho. A minha parceira de viagem e aventura é uma Vizan, aro 29, quadro 21, preta e branca, equipada com sistema Shimano Deore. Tive um pouco de trabalho para encontrar uma bike com essas medidas (ato 29 e quadro 21) e dentro de um valor possível para as minhas condições, mas depois de uma minuciosa pesquisa, encontrei essa marca, que é nacional e relativamente nova no mercado (Santa Catarina). Como pai coruja, certamente, acho essa minha bike muito massa! É claro que preciso fazer uns ajustes, isto quer dizer colocar uma mesa regulável e um bagageiro pequeno na frente para as próximas grandes viagens.
Ainda sob inspiração do livro, percebo que eu tenho ganhando confiança da bike e ela de mim, isso porque a estrutra se adapta ao meu peso, ao jeito de pedalar, etc.
Assim, noto que tenho muito mais confiança, por exemplo em descer as ladeiras. Cheguei a embalar 70 km e me senti seguro. Outra feita a deixei completamente carregada (com 35 kg) e peguei verdadeiro rallye sem me sentir cabreiro. Mesmo cortando o vento da Patagônia, com uma inclinação, ao pedalar, de 20 graus, fui de boa.
É claro que essas relações aqui retratadas não dizem respeito apenas a mim. Cada um dos meus companheiros desta viagem têm o que falar. E possivelmente uma coisa comum é a experiência de liberdade que sentem. Ao montar na bike, vivemos a experiência de liberdade, nos conectamos com nós mesmos, "permitimo-nos a diferença e seguimos nossas lendas" (Inspirado em Diário de uma Bicicleta).
Acho que a ação de pedalar, que é justamente a magia do movimento e do equilíbrio que traz o grande ensinamento da vida, ou seja, o equilíbrio só se dá em movimento (inspirado em Diário de uma Bicicleta). A vida, afinal, é movimento. 

O quarto dia de pedal

Aproveitamos esses dias de "férias"  para recuperarmos nossas energias. No dia anterior, praticamente comíamos e dormíamos. Já no dia seguinte, no domingo, bateu logo aquela agonia de procurar fazer alguma coisa. Resolvemos dar uma pedalada e conhecer a cidade. Encontramos, na orla, uma bela ciclovia (de dar inveja às nossas cidades). Fizemos um bom percurso, mas não deixamos de saldar o oceano pacífico. Fomos até uma ponte e sentimos, no toque e no gosto, a magia desse outro oceano. Éramos, ali, "os três desgarrados no Pacífico", eis a sensacional tirada de Arestides. 
Estávamos também com grande expectativa para saber como fora o pedal de Nilo,  Paulo, Rafaelo, Alex e Del. A última vez que o vimos (pelo menos Chico e eu) foi na Ruta 40, onde havíamos saído de Tapi Aike à Cerro Castillo. 
Arestides, Chico e eu, aquele altura, umas 15h30, estávamos no Hostal Picada de Carlitos, de Puerto Natales, onde havíamos nos hospedado, comendo uma deliciosa macarronada ao molho de sardinha e atum quando, para nossa boa surpresa, chegaram os caras! 
Na verdade, imaginávamos que eles iriam chegar à noite, pois de Cerro Castillo até Puerto Natales são uns 60 km de distância e com o vento contra a coisa não seria fácil. Porém, pelo visto tudo tinha dado certo e estávamos, os três desgarrados, doidos para saber das novidades, principalmente como haviam passado na estrada, tanto na chegada a Cerro Castllo, antes de os deixarmos, quanto no quarto dia de pedal.
Os caras disseram que realmente foi sinistro a chegada até Cerro Castillo, na verdade até a aduana (10 km antes de Cerro). Eles chegaram às 23h e o desespero e fadiga eram tremendos, já abatendo todos. Foi, de longe, o pior trecho da viagem até o momento. 
Eles dormiram em um galpão ao lado do posto da aduana e, graças a gentileza dos guardas fiscais argentinos, puderam ter água para beber. Nilo, por exemplo, estava desidratado. Havia bebido toda sua reserva e, na estrada, só pensava em líquidos, sentia dores no corpo e tinha uma sensação de desfalecimento. Possivelmente, o seu organismo entrara em colapso, mas a força interior e a coragem, além do preparo, garantiram seguir adiante. Nilo, em retrospectiva, já conosco no "Hostal", disse que havia aprendido a lição. Ele estava usando muita roupa, por causa do frio, mas era justamente isso que fazia com que ele perdesse líquido por causa do suor. De agora para frente estaria usando o mínimo necessário de roupa, mesmo no frio.
Bem, os caras, ao amanhecer no dia seguinte, antes de pedalarem mais 10 km para o oásis que seria Cerro, passaram pela aduana, de modo a sair da Argentina e entrar no Chile. Nessa passagem, não menos que Del, rolaram situações estapafúrdias, para não dizer hilárias.
O dito cujo, em Tapi Aike, havia encontrado uma carcaça de ema. Não se controlou e pegou a cabeça da grande ave, pendurando-a em sua bike (dizem que costuma fazer isso. Em outra aventura, pendurou em sua bike uma cabeça de boi e rodou a viagem toda desse jeito). O problema foi que, na sua inocência, não se deu conta e foi tentar passar na aduana. De imediato os ficais pararam Del. Afinal, ema é um animal protegido por lei e também há toda aquela história de não poder passar com produtos orgânicos de um país para outro. Os fiscais deram a maior bronca, uns sérios e outros até rindo da insanidade do nosso companheiro. Como Del não tem papas na língua, ao ser indagado o porquê havia feito aquilo, respondeu na lata que era doido mesmo e que no sertão, em outras pedaladas, pegava cabeça de boi, pedra... Que carrega tudo na bike. Agora imagine Del falando com aquele sotaque alagoano para os argentinos! Será que entenderam!? Certamente viram que era piradão mesmo e deixaram-no em paz.
Para compensar a sequência, Del sentiu dor de barriga (êta homem que sente dor de barriga!!!) e foi ao banheiro da rodoviária. Após seu alívio, procurou papel. Não encontrou. Sem pestanejar, abriu a porta que dava privacidade da latrina, saiu do jeito que estava, com as calças abaixo do joelho, para procurar papel. Ignorando uns dois homens que estavam no toalete, Del empurrava uma porta e nada. Abria outra e nada. Olhou para um lado e viu algum aviso (desses que dizem para não jogar papel no chão), não contou conversa e se serviu do papel, ali mesmo, no meio do banheiro. Olhou para o outro lado e avistou o segundo aviso. Pelo menos deu para tirar o grosso. E ele, ao nos relatar esse episódio, disse que estava certo, afinal iria ficar como?!
Os rapazes, após toda essa história  na aduana, foram, finalmente para Cerro, onde ficaram em um aconchegante Hostel. Passaram o dia por lá recuperando as energias. No dia seguinte, por volta das 9h, partiram para Puerto Natales. O pedal nesse trecho, para surpresa deles foi muito tranquilo. Não houve vento, o tempo estava um pouco nublado, pegaram asfalto e pedalaram em um relevo plano. O pedal foi, nas palavras de Paulo, um passeio com bonitas paisagens, lagos e muitos animais silvestres, Chegaram bem a Puerto Natales e ainda puderam desfrutar da deliciosa macarronada de Arestides, além de tomar uns bons vinhos chilenos, inclusive um chamado bicicleta.


domingo, 22 de março de 2015

Transcendência, agradecimentos e amor

Uma aventura de bike como esta é também uma aventura que nos transcende, pois o contato intenso com a natureza e com nós mesmos faz com que experimentemos algo que se pode chamar de dimensão espiritual.
Uma das intensas vivências que pude experimentar foi e é a do reconhecimento (conhecer novamente por outros olhares, novas perspectivas ). Para mim, neste caso, agradecimento, o sentimento de gratidão é muito importante
Nessas horas que estamos pedalando, por exemplo, quando o vento bate no rosto da gente, onde vemos montanhas ao nosso lado e quando o céu azul anil nos acoberta, somos, por vezes, tomados por uma sensação que nos comove e nos conecta com o universo.
Ao tempo que nos ligamos ao mundo e aos demais seres, mergulhamos em nós mesmos e pudemos, com tudo isso, viver uma ascese espiritual.
Nesses momentos recapitulamos nossas vidas e um contentamento de graça e agradecimentos por todos os entes queridos raiam como aquele sol cálido que aquece sem arder.
Diante de toda essa experiência venho vivendo os meus agradecimentos.
Agradeço aos elementos por todas essas experiências singulares e maravilhosas ao cruzar uma parte da  Patagônia e, inevitavelmente, agradeço aos amigos que, ao me
virem como louco, me apoiaram. 
Agradeço aos meus primos, primas, tios e tias, ciclistas ou não, por me desejarem boa aventura.
Ao meu irmão Carlinhos com toda sua preocupação, agradeço.
Agradeço a minha irmã Dea por saber me amar do jeito que sou e compreender minha natureza aventureira. A amo, assim como meus lindos sobrinhos e ao meu cunhado e irmão Antenor.
Ao meu pai que, com certeza, queria estar nessa, ou pelo menos conhecendo as cordilheiras. Este homem que tanto o reconheço em mim.
A minha mãe cheia de preocupação, mas que, veladamente, apoiou quando comprou o sapato / tênis que  uso nesta viagem. Esta mulher se profundo coração e que sabe tão bem servir ao outro. Também reconheço ela em mim.
Ao meu padrasto que garantiu algumas filmagens e que me deu uma câmera. Este que me foi pai várias vezes. 
Aos meus filhos rapazes e princesas, tesouros da minha vida que me inspiram a viver e me desenvolver como ser  humano. Os vejo seres esplendorosos e iluminados. Por tabela agradeço o recém chegado Marcos Bruno, companheiro de minha filha. Estou de acordo com olho!
E agradeço, especialmente, a minha esposa, que tem sido uma companheira maravilhosa, apesar de saber que, talvez, não tenha sido o marido que ela esperasse que eu fosse. 
Com ela tenho aprendido muitas coisas. Lucimar tem me ensinado a ser mais família, a ter pé no chão e encontro nela uma alma boa. Com ela pude ganhar toda uma família especial que são os Mouras e Coelhos de Remnaso. Ela me tornou menos desequilibrado. É, sem dúvidas, uma pessoa muito sensível. Ela tem sido, ao longo desses 18 anos, uma mulher de verdade... Guerreira, mãezona, parceira das horas boas e más, fiel, honesta com os outros e com ela mesma, amante... E sempre encantadora. Mesmo quando é muita chata e reclamenta, vejo no seu olhar, no fundo dos seus olhos azuis, uma luz, um mar de amor. Eis aí Lucimar a mulher que amo.

sábado, 21 de março de 2015

O terceiro dia de pedal: a terceira baixa

Depois de dormirmos em uns contêineres abandonados em Tapi Aike, partimos para o nosso próximo destino, que seria em Cerro Castillo. Em termos de distância não seria longe, uns 60 km e no alfalyo, é a famosa "Ruta 40". O problema é que seria contra o vento e com muitas ladeiras. 
Partimos já tarde, por volta das 12h30. Logo de saída percebemos o quanto seria difícil, pois ventava muito contra a gente. Nosso pedal não passava de 5km / h e só na marcha lenta. Era como se estivéssemos subindo uma ladeira, ou seja, imagine subindo uma ladeira de 60 km!!! Como disse Paulo, o vento é tão forte que você tem que pedalar na descida, se não a bicicleta para. E tudo isso sem contar a quantidade de peso nos bagageiros! Na verdade, o tranco estava acumulado, pois vínhamos de dois dias sem dormir direito, com alimentação precária e sem contar do esgotamento físico.
Após 20 km percorridos, percebi que não dava mais para mim. As pernas entraram em fadiga e, por vezes, fechava os olhos enquanto pedalava, buscando, nessa ação, recuperar energias em alguma parte de mim. Tinha a impressão que iria desfalecer. Tentei ainda descer da bicicleta e empurrar (fazia 4km / h), mas mesmo andando me cansava levar a bicicleta carregada e contra a ventania (acho que estava acima de 30km de velocidade). Em um dado momento, achei muito bacana da parte do Nilo ficar ao meu lado, mesmo distante do grupo. E quando desci da bike ele também assim o fez. 
Dei-me conta que pedia ao grupo para parar a cada 1,5km, seja para beber água (havia frio, ar seco e o vento fazia com que a gente perdesse muita água), para respirar um pouco ou para diluir a dormência que sentia em minhas mãos. Mas chegou a hora de aceitar os limites. Já estávamos com 5 horas de pedal duríssimo. Pedi o stop e comuniquei ao grupo que iria tentar carona e que os encontraria na próxima parada. Nesse momento Chico disse que também não dava para ele e que me acompanharia. 
Bem, demos boa sorte aos nossos parceiros e ficamos na pista. A princípio continuamos a pedalar e a pedir carona, quando, obviamente, passava algum carro. Apenas um veículo parou. Era um jovem casal argentino que nos ofereceu água e barras de cereais, mas não tinha como nos ajudar mais, pois seu carro era pequeno. Boas almas aquelas. 
Passamos a ficar, Chico e eu, preocupados, pois não estávamos conseguindo carona, o anoitecer era próximo e a nossa reserva de água chegara no limiar. Chico então deu ideia de voltarmos à Tapi Aike, pelo menos pedalaríamos 22km a favor do vento e lá teríamos, no mínimo, água e abrigo. Não rodamos 5km e avistamos uma carreta. Paramos e pedimos carona. Milagre! A carreta parou e um jovem motorista disse que nos levaria. O segundo anjo! Colocamos as bikes na carroceria (parecia ser uma carroceria de transportar cordeiro, muito comum nessa região). O jovem, que se chamava Dário, disse que passaria por uma cidade chamada Rio Turbio e que lá poderíamos pegar algum outro transporte para Cerro Castillo. No meio da estrada passamos pelos nossos companheiros, mas não deu para comunicar com eles. Sentimos muito por termos desprendido do grupo e torcemos para que tudo desse certo com eles. 
Bem, não paramos em Cerro Castillo, mas chegamos em Rio Turbio (uma cidade maior e um pouco mais longe) já na boca da noite. Combinamos que iríamos dormir em alguma pousada e após pedir informações, montamos em nossas bikes para encontrar nossa guarida. Já havíamos pedalados um montão e não víamos a hora de comer alguma coisa que não fosse purê de batata em pó e sardinha, além de tomar um banho (estávamos podres). Como a pousada parecia muito longe, Chico avistou um ginásio onde muitas pessoas estavam saindo. Perguntamos a uma madame sobre a pousada e a mesma ratificou a informação que havíamos recebido. Era seguir mais uns 2 km adiante. Quando já estávamos montando em nossas bikes, um homem nos chamou. Ele disse que havia conduzido o nosso amigo Arestides, de Rio Turbio à Puerto Natales (cidade chilena que faz fronteira com a Argentina). Um milagre e o nosso outro anjo!!! 
Com as tralhas todas no bagageiro e as bikes no teto (acho que o carro de Juan era um Golf), passamos pela fronteira e andamos uns 25 km até chegarmos em Puerto Natales (esta cidade está dentro do percurso e vamos reencontrar a galera para dar continuidade ao pedal).
Juan nos deixou no hotel que Arestides estava. Reencontramo-nos e foi aquela festa. Recuperamos as energias as energias e fuçamos a aguardar o pessoal. Aproveitamos também para organizar o nosso planejamento e avaliar as condições do pedal (direção do vento, ladeiras, etc).

O vento nos trouxe lições. Lições para vida que estão além das conquistas de chegar ou não. O vento nos mostrou que é importante lutar até o fim e que, no sopro forte, nos permita ser tocados na alma. E lá, na alma, o vento tem a nos dizer as coisas mais importantes e que só cada sabe. O vento nos humaniza porque sempre há algo que posamos ouvir dele. E tudo isso me fez lembrar aquela música do Bob Dylan, "Soprando no vento"

Quantas estradas precisará um homem andar 
Antes que possam chamá-lo de um homem? 
Quantos mares precisará uma pomba branca sobrevoar, 
Antes que ela possa dormir na areia? 
Sim e quantas vezes precisará balas de canhão voar, 
Até serem para sempre abandonadas? 
A resposta, meu amigo, está soprando no vento 
A resposta está soprando no vento 
Sim e quantos anos pode existir uma montanha 
Antes que ela seja lavada pelo mar? 
Sim e quantos anos podem algumas pessoas existir, 
Até que sejam permitidas a serem livres? 
Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça, 
E fingir que ele simplesmente não vê? 
A resposta, meu amigo, está soprando no vento 
A resposta está soprando no vento 
Sim e quantas vezes precisará um homem olhar para cima 
Antes que ele possa ver o céu? 
Sim e quantas orelhas precisará ter um homem, 
Antes que ele possa ouvir as pessoas chorar? 
Sim e quantas mortes ele causará até ele saber 
Que muitas pessoas morreram? 
A resposta, meu amigo, está soprando no vento 
A resposta está soprando no vento 


Segundo dia de pedal

Eu estou exausto.! Aliás, todos nós estamos. Penso que hoje foi o teste da resistência, assim como o primeiro foi o teste do frio e da chuva.
Tivemos, nesse dia, nossa primeira baixa. Arestides não aquentou prosseguir e conseguimos, para ele, carona com um casal de americanos que, por acaso e sorte nossa, passava pelo meio do deserto naquela pista de cascalho (ripio). A ideia é que a gente reencontre Arestides em dois dias. Isto lhe dará condições de recuperar as energias e prosseguir com a gente.
Hoje foram 80 km punk. Na verdade os primeiros 20 km de asfalto não contam. O pesado mesmo foram os 60 km de cascalho, subidas e descidas intermináveis, além do grande inimigo do ciclista, o vento! Fizemos uma média de 8 km/h e pedalamos durante 11 horas.  Um grupo chegou primeiro ao local do rancho e outro mais tarde. O último grupo (Nilo, Del, Rafaelo e Alex) chegaram 23h da noite! Esse grupo ainda enfrentou vários outros percalços. O pneu da bike de Nilo furou, o bagageiro dianteiro do Alex quebrou e o bagageiro traseiro do Del estourou.  Se a situação para o primeiro grupo (Chico e Paulo), além de mim que vim só (pedalei entre um grupo e outro) foi muito difícil, imagine para o segundo grupo. Os caras disseram que eles não sabiam mais o que fazer e já havia batido o desespero, do tipo acampar em qualquer lugar na estrada, pois o cansaço já estava dominando.
Apesar dessas agruras, pedalar na inóspita Patagonia, subindo e descendo montanhas, olhando para um descampado árido de tonalidades marrons, é algo maravilhoso. É de uma beleza e de uma sensação de paz indescritível. O contato com a natureza é algo que dá uma experiência de transcendência, seja a montanha, o céu, o vento constante, os animais como a águia, a lhama, a ema, o coelho e mesmo os pássaros que nos acompanhavam de longe.

Em uma aventura como essas é muito comum o lidar com os próprios limites e trabalhar a força de superação. Para tanto, enfrentamos muitos obstáculos, que no geral, está em nós mesmos (é claro que existem os obstáculos externos e situações que não há o que fazer. E o mais sábio mesmo, a depender da autuação é recuar). Então esses obstáculo normalmente aparecem  em forma de questionamentos / pensamentos do tipo: "o que estou fazendo aqui!?", "não vou conseguir", "vou parar", "vou dormir".
Eu mesmo quando estava para chegar no nosso abrigo, já exaurido, não aguentava mais, não tinha mais forças nos braços e nas pernas. Pedalava na marcha lenta, mas era o máximo que podia dar. Já estava escuro e o frio aumentava. Via as luzes de onde iríamos parar e parecia que, quanto mais pedalava , mais demora a chegar. Nessa, o desespero aumentava, pois sabia que podia sucumbir. Era então nesses momentos que parava, ficava em pé, mais ainda com a bike entre as minhas pernas, respirava tranquilamente e profundamente, como se estivesse tirando energias do fundo de algum lugar, procurava me acalmar, levantava a cabeça para o céu, ganhava coragem e voltava a pedalar!
Finalmente, e graças a Deus, todos chegaram bem, apesar do enorme cansaço. Essa nossa parada, em
Tapi Aiki, é o fim da estrada de cascalho e começo do asfalto. É, na verdade, um posto fiscal. Conseguimos, com o pessoal do posto, nos abrigar em quartinhos de uns contêineres abandonados. Para nossa felicidade não precisamos montar barracas.  





O primeiro dia de Pedal

Todos estávamos muito ansiosos com a expectativa do primeiro dia de pedal. Os sintomas eram claros, a todo instante um ia ao banheiro, a comunicação demostrava grande excitação e mesmo a insônia bateu em alguns.

Saímos de El Calafante por volta das 10h30, uma hora a mais do que havíamos previsto. Logo de cara notamos que Del não nos acompanhava. O que será que havia acontecido!? Esta pergunta passou pela cabeça de todos. Logo lembramos que havíamos marcado para tirar umas fotos na saída da cidade e, possivelmente, Del estaria por lá. Dito e feito. Só que ao chegarmos no ponto avistamos apenas a bike de Del. Bem, o nosso parceiro tinha ido ao mato por conta de uma dor de barriga.

Ainda na saída da cidade, onde paramos para tirar uma foto, estaciona um carro e dessem duas mulheres se oferecendo para tirar fotos. É claro que foi aquela esculhambação, principalmente porque Del tirou onda com as mulheres. Elas eram da prefeitura, possivelmente ligadas a algum grupo político. Segundo elas, o que havia chamado atenção eram as nossas camisas oficiais da viagem (cor laranja). Ao final, elas tiraram uma bandeira (laranja) e fizemos todos uma foto. Exercitamos a "nossa política internacional".

Prosseguimos com a nossa missão de rodar, mais ou menos, 70km, pois a ideia seria não forçar nos primeiros dias. Tivemos sorte na largada, pois pegamos o vento ao nosso favor. A velocidade dele estava, em média, a 30km. O que é, para os parâmetros da Patagônia, uma brisa.
A paisagem era inapreensível, linda demais. Aquele descampado todo marrom, árido, inóspito, um vale a nossa esquerda,  um rio que margeávamos de longe e ao fundo, o lago de El Calafate, enorme. O céu... aquele azul claro próprio da bandeira da Argentina.

Depois de uns 44 km rodados, paramos para lanchar na beira de um riacho, com uma ponte em frente e com uma vegetação que nos protegia do vento. Lanche feito, de volta a pista!

Depois de alguns poucos minutos encaramos o nosso primeiro desafio: 8 km de subida (sinuosa). Por volta dos 3 km, Arestides sentiu dificuldades em continuar. Sabíamos que, para ele, os desafios seriam maiores. Resolvemos, Paulo, Chico e eu, ficar acompanhando Arestides. Realmente o nosso mestre demostrou uma incrível capacidade de superação, afinal o garoto não tem 18 anos, mas sim 73! 
Bem, depois de algumas paradas e da marcha lenta, conseguimos chegar no topo, onde nos reunimos com o resto da rapaziada que nos aguardava. 

Percebemos que nuvens se aproximavam e que era indicativo de chuva. Aquele momento a temperatura já havia caído e estava uns 4 graus, além disso estávamos a 840 metros a mais de altitude.

Em pouco tempo a chuva chegou e quase todos haviam colocado suas calças e casacos impermeáveis, além da proteção para os pés. Penso que apenas Arestides e eu não o fizemos. Da minha parte subestimei as inevitáveis conseqüências.

Em pouco tempo já estava tremendo de frio, as mãos e os pés congelados. O mesmo se deu com Arestides. A programação era, ao chegar nos 70 ou 75 km encontraríamos algum abrigo para acampar. Já estávamos, naquela altura, todos com muito frio (pois o vento também era inclemente). O desespero bateu, pois não encontrávamos abrigo e a estrada toda era um deserto e sem lugar para nos proteger, nem ao menos do vento. 

Chegando aos 80km vimos uma ponte e avaliamos que seria viável acamparmos debaixo dela, porém lá era o próprio canal do vento. Eu estava desesperado, pois não sentia mais as mãos e Arestides estava com sinais de hipotermia. Felizmente, nos encolhemos em um canto da ponte e conseguimos amenizar o frio. O problema era que não havia condições de acampar e não tínhamos a mínima chance de prosseguir. O horário também exigia o rancho, pois já eram quase 17h. 
Tomei uma dose de wisck que Paulo me deu e imediatamente  procurei colocar meu casaco, tirar a meia molhada e todo o resto que estava úmido. O mesmo fez Arestides e todos do grupo souberam bem se ocupar dele.
Paulo e Chico localizaram um bom lugar para acampar, próximo da ponte. Havia um barreiro, ao lado da rodovia, que nos protegia do vento e o terreno era plano e com vegetação rasteira. Montamos, então, as barracas, providenciamos a comida e fomos nos recolher, pois a tropa estava exausta desse primeiro dia. Sobre a comida é interessante observar que basicamente rangamos purê de batata em pó e sardinha. Havíamos levado fogareiros pequenos. Bem, pelo menos garantimos proteína e carboidrato.
O problema, para completar, foi o frio, pois a temperatura caiu muito, ceifando abaixo de zero. Felizmente nossas barracas, saco de dormir e manta térmica amenizaram. 
Tentamos dormir, relaxar e ganhar forças para enfrentar o segundo dia.
Ainda durante a noite, com um frio terrível, ninguém se atrevia a sair das barracas. Quando alguém precisava urinar dava seu jeito. Em uma dessas Del, que dividia barraca com Alex, pegou um saquinho para urinar. Após o alívio, se deu conta que o saco estava furado para desespero de Alex. Foi aquela confusão, mas todos, aquele altura acordados, não aguentaram e caíram na galhofa, afinal desgraça pouca é bobagem.
Desse primeiro dia entendemos que há necessidade de sermos mais precisos no que diz respeito às paradas. Avaliamos também que o grupo está bem entrosado, pois vivemos momentos de tensão e soubemos superar e nos entender.




quarta-feira, 18 de março de 2015

Os glaciais de Perito Moreno

Às vésperas de partirmos, de fato, rumo a Ushuaia, nos propomos conhecer um pouco a região e visitar os glaciais de Perito Moreno. Eu e Aristides fomos fazer a parte mais light (caminhar nas passarelas e passeio de catamarã), enquanto os outros seis foram fazer o mini track, que é a trilha sob o gelo.
Além da agradável e sábia companhia desse meu novo parceiro de 73 anos, vivemos a incrível experiência, no catamarã, de nos aproximar e experimentar o visual de um dos glaciais mais antigos do mundo. Perito Moreno corresponde a formação de gelo de uma das mais antigas do mundo, desde a última era glacial. O visual é alucinante, o gelo tem 60 metros de altura e 100 metros de profundidade. O glacial tem 14 de extensão! A lagoa formada pelo degelo pode chegar até 700 metros de profundidade. A cor do gelo tem tonalidade azulada e as formas são pontiagudas. Por vezes os blocos de gelo se rompem, fazendo grande barulho. Mas o mais emocionante mesmo desse paceio foi quando estávamos nos aproximando dos glaciais e Aristides e eu resolvemos ir para parte externa do catamarã. O vento era extremamente forte, respigava água em nossas calças e a sensação de frio se intensificava. Tudo muito impressionante e a gente podia sentir o leve lambido da força bruta da natureza. Nesse pico da emoção não conseguia colocar o capuz do casado, Aristides não achava os óculos, as luvas não protegeram do frio e o negócio ficou complicado. Ainda bem que a intensidade do vento se dissipou ao nos aproximarmos mais ainda das enormes paredes dos glaciais. Aí deu para aproveitar um pouco mais tranquilamente a paisagem.