Saímos de Rio Grande por volta das 9h30 (aliás, este foi um horário regular das nossas saídas). E pegamos a estrada que nos levaria até Ushuaia. Todavia, nosso planejamento era pedalar cerca de 75km e acampar. Depois, pedalar mais 70km, passando por Tulhuin. Finalmente, pedalar o último dia até chegar ao nosso destino final.
Nesse ante-penúltimo pedal, o dia amanhecera chuvoso, mas não muito. Isto fez com todos se preparassem com suas capas de chuva, calças impermeáveis, proteção para os sapatos e até os improvisos, como sacos plásticos enrolados nos pés e luvas de borrachas (aquelas que se usam na cozinha) para protelar as mãos. As vezes ficávamos muito estranhos com toda aquela parafernália, mas depois do trauma do primeiro dia de pedal, qualquer possível exagero não seria pouco.
Saímos da cidade e logo pegamos uma beira mar muito linda. Havia retões de quilômetros e também longas curvas, de modo que curtíamos todo o visual da imensidão do mar. Do no nosso lado direito havia pequenos morros com diferentes colorações, mas sempre no espectro do marrom.
Nesse trecho, o tempo tinha melhorado, havia pouco vento, mas a pista estava molhada. Tínhamos que tomar cuidado não só por causa da água no asfalto e no acostamento, mas também por causa dos carros, ônibus e, principalmente, os caminhões, que passavam em alta velocidade e, por algumas vezes, muito próximos da gente, deixando-nos em grande perigo. Isto fez com que passássemos a pedalar de maneira mais prudente, ou seja, toda vez que ouvíamos um veículo se aproximando, saímos da linhazinha branca, no canto do asfalto, e íamos para o acostamento, que, via de regra, era de barro ou brita.
Quando começamos a sair da beira mar e passamos a subir montanhas e entrando mais ao interior, notamos que Del e Alex não estavam vindo. Paramos na entrada de um camping para aguardar os dois e ao mesmo tempo analisamos a possibilidade de passarmos a noite ali. O problema é que tínhamos rodado pouco para o nosso objetivo de 75km (havíamos rodado a metade ou menos até) e era ainda cedo, cerca de 13h.
Uns vinte minutos depois que tínhamos parado, os meninos chegaram. O pneu da bike de Del havia furado. Esta fora a segunda situação de pneu furado na viagem.
Decidimos avançar, pedalar mais e aproveitar o dia.
Havíamos nos distanciado do litoral e a geografia já era outra. Estávamos subindo, começava a aparecer pequenos rios, a vegetação mudara, sobretudo porque tinham mais árvores e também eram maiores.
Por volta da 17h procurávamos um bom lugar para armar o nosso acampamento. Passamos por uma ponte e vimos um riacho, pessoas fazendo piquenique e fogueiras. Seria ali mesmo o nosso rancho! Escolhemos um bom lugar (depois descobrimos que não foi tão bom assim porque montamos as barracas debaixo das árvores e havia risco das mesmas caírem sobre a gente, pois queda de árvores é bem comum na região) e tivemos direito a fogueira. Isto porque uma família que estava usando, tinha deixado para gente. Tudo perfeito! Riacho, fogueira, protegidos do vento e o próprio camping.
Lógico que resenhas não poderiam deixar de ter nesse dia. Saíram Del e Raffaello para tirar fotos no bosque, na volta Alex perguntou, de onda, onde estava o celular dele para fotografar algumas coisas. Del se deu conta que não estava com ele e saiu para procurar de volta no bosque. Alex ficou morrendo de dar risada, pois acreditava que estava a fazer Del de bobo, afinal supunha que tinha ficado (ele, Alex) com o celular. Depois de alguns minutos, chegou Del aliviado com o celular na mão e Alex branco de susto. Ou seja, Alex achava estar com celular, mas este realmente havia sido perdido!
Tínhamos rodado bem aquele dia. Foram 75km de boa e estávamos aproveitando uma das melhores noites de acampamento. Só faltou mesmo a carninha para assar na fogueira.
Na noite, fomos brindados com um céu estrelado, porém sentimos frio. Felizmente nenhuma árvore caiu sob nossas barracas. Pensamos sobre nossas vidas, fomos dormir e sonhamos como crianças.
Em um dos sonhos, o guru Nilo me acompanhava em uma caminhada. Ele com aquele jeitão distraído, observador... Segurava sua bike, com um monte de tralhas e pedacinhos de panos e cordas caindo pelos lados. Era a bike mais desorganizada e também a mais engraçada.
Nessa caminhada, cada um segurando suas bikes, conversávamos sobre a vida e sobre a obsessão de termos metas e objetivos o tempo todo. Eu mesmo já havia defendido ter metas, objetividade e foco (inclusive ter foco me ajudou a superar alguma dificuldades no pedal).
Nilo falou "bicicletar". Sim, o verbo "bicicletar"! Na hora lembrei e pensei um monte de coisas...
Estava no foco. Estava olhando para linha branca da estrada. Aquela linha que fica no canto da estrada e que seguimos obstinadamente ao pedalar. Dei-me conta que estava perdendo algo da viagem. Sabia que ter foco era algo importante na vida, pois nos ajuda a ter objetivos, mas a vida não é só feita de objetivos e metas (isto me fez lembrar a música de Paulinho Moska, "A seta e o alvo" - eis o refrão: "Mas você só quer atingir sua meta. Sua meta é a seta no alvo, Mas o alvo, na certa, não te espera").
Nilo prosseguiu, como que adivinhasse o que eu pensava.
"Por isso o verbo 'bicicletar'".
Sim, Nilo, este verbo significa justamente deixar rolar, curtir, ir a diante.
E continuando nos meus pensamentos... A vida demanda objetividade as vezes, sobretudo necessitamos algo específico e temos que lançar mão das nossas energias. Objetividade é concentrar energia e precisá-la em algo. Porém, a objetividade não pode e nem deveria ser a preponderância da vida. Esta, em vários momentos, pode ser objeto (da própria vida), mas não a vida um objeto.
O problema é que o sistema produtivista e consumista instaurou o reinado da objetividade e tudo ou quase tudo escorrega para esse funil, que afunila a vida.
A vida não é só objetiva (ou de objetividade). A vida mesma não é precisa, não é focada, a vida é transitória, flutuante. "Navegar é preciso, viver não é preciso" (Fernando Pessoa).
Pedalando apenas com o foco (olhando para linha branca) me ajudava a superar algumas dificuldades, mas passar o pedal todo assim, me fazia perder a riqueza da viagem.
Acordamos bem para enfrentar o penúltimo dia de pedal.
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