sexta-feira, 3 de abril de 2015

Décimo segundo dia de pedal - a chegada e redenção

Na manhã de uma terça-feira, acordamos ainda ressaquiados da pegada do dia anterior. Particularmente, ainda lembrava da minha mão que ficara adormecida (por causa do frio e da posição que meu guidom estava) e sentia o dolorido da bunda por conta de ficar muito tempo sob o selim. A perna também estava mal, sobretudo por causa dos esforços redobrados que eu era obrigado a imprimir para vencer o vento. Doía muito, principalmente quando o sopro dos céus batia e obrigava a dar pedaladas mais fortes para manter a velocidade e equilibrar a bike.
Tínhamos apenas um trecho a completar e nos restava, mais ou menos, 70 km pela frente. O desafio era que estaríamos em picos de montanhas mais altos e, consequentemente, em uma temperatura mais fria. Além disso, pegaríamos 5 km de subida, além de enfrentarmos possíveis rajadas de vento vindo de qualquer direção.
Deixamos aquela casinha e agradável propriedade com bastante gratidão. Procuramos o Pedro para nos despedir, mas como não o encontramos, deixamos um bilhete de "gracias".
O clima do grupo ainda estava pesado, talvez até tenha piorado porque Alex anunciara que iria partir na frente, sem o grupo. Esta decisão abalou a galera porque queríamos muito chegar todos juntos. Imaginávamos, caramba, todos pedalando unidos e entrando na cidade de Ushuaia. Mas fazer o que!? Tocamos o pedal!
Realmente, a questão de grupo, em uma aventura como essa, passa a ser um dos principais desafios. Pessoalmente, reprovo radicalmente estes programas que exploram o "lixo humano", como os reality shows (o Pedro Bial do BBB, por exemplo, vai falar, cinicamente , de "circo dos horrores"). Avalio que esses programas exploram e reforçam o que há de pior na humanidade. É claro que não podemos e não devemos negar que existem coisas nefastas na humanidade, mas incentivar e potencializar isso são coisas completamente diferentes. Mas voltando ao nosso grupo e a situação que estávamos expostos, essas crises que vivíamos poderiam ser consideradas comuns. Entretanto, certamente não queríamos potencializá-las, afinal não estávamos e não acreditávamos em "circos de horrores".
De modo específico, para mim, viver essas tensões no grupo não foi uma coisa fácil. Primeiro porque era novato na galera e muita coisa me escapava. Por outro lado, estava como uma espécie de observador / pesquisador e precisava ter um relativo distanciamento para refletir melhor sobre as paradas dos momentos. A estratégia encontrada foi saber estar junto/presente e ao mesmo tempo distante para evitar tomar partidos e não perder a abrangência das percepções.
O nosso pedal começou de boa, mas logo nas primeiras pegadas sentimos frio e sacamos que a coisa não seria fácil. Havia também uma certa ansiedade na gente, afinal eram os últimos quilômetros depois de 12 dias de pedaladas.
Para compensar tudo isso, o visual que vivíamos era incrível! Havia montanhas, vários pequenos rios e cachoeirinhas, muitas árvores, um lago ao lado (Lago Escondido) que margeávamos quilômetros e quilômetros. Pedalávamos cortando as montanhas e o víamos (o lago) lá de cima. Na sequência, passamos pelo Paso Garibalde (uma antiga estrada que levava ao complexo de montanhas e ao Lago Escondido). Eram grandes subidas e descidas, aliás as descidas eram deliciosas. 
Largávamos os freios e deixávamos soltar. No embalar das bikes, atingíamos velocidades que se aproximavam dos 60km/h, velocidade a todo risco, como diria o poeta Damásio da Cruz. Tudo isso com toda a boniteza da natureza ao nosso redor. No pico das montanhas havia neve e isso dava um toque todo especial.
Aquelas subidas pioraram as dores em minhas pernas, que estavam moídas dos vários dias de pedais. Alem disso, o que acentuava a ansiedade em relação a chegada era ver a quilometragem do ciclo rodando e os cálculos regressivos: faltam agora 35km, faltam agora 20km... 
Fato é que os últimos quilômetros estavam adicionados a ansiedade e o cansaço acumulado. Por mais que tivéssemos sorte nas dormidas ou pelo menos em algumas delas, dormir em saco de dormir, por exemplo, não era uma coisa fácil. 
No frio do austral não bastava só barraca. Havia necessidade de ter o saco de dormir. A gente ficava no saco de dormir, dentro dele, bem retinho, aí quando começava a incomodar a posição, a gente mudava de lado, e então a gente acordava e a voltava a dormir...  E se a gente ficava em uma parte de fora da manta térmica, voltava a fazer frio e acordava a gente (o esquema era o seguinte: barraca, manta térmica e por cima o saco de dormir). Apesar de todas as turbulências e dificuldades, tínhamos muitos momentos de humor e jorros de risos.
Assim, só para descontrair, não mais que Del, havia colocado uma pedra de uns 2kg escondida no bagageiro de Raffaello (alcunhado, por Del, de "menininho de ouro"). Raffaello, na sua inocência, ultrapassava a gente, como de costume, e se mandava para frente. Em uma das vezes, disse que a sua bike estava leve! Ao estar a nossa frente, avistávamos a grande pedra que carregava e nos pocávamos  de dar risadas ! E olhe que estávamos subindo uma serra terrível!! Raffaello andou carregando esse pedregulho no bagageiro por uns 15 km até que, em uma das paradas, percebeu a dita cuja. Ainda bem que ele teve senso de humor.
Depois de termos atingindo o pico, começamos a descer. Após um certo tempo, quando nos aproximávamos de um restaurante em uma estação de esqui, vimos que Alex estava na beira da estrada, sentado, se tremendo de frio e esperando a gente. Foi muito bom para todo mundo vê-lo e sabermos que ele havia ficada com a gente. Ao nos aproximar, ele foi logo dizendo que no restaurante vendia um chocolate quente muito massa. Paramos e fomos nos aquecer com o néctar dos deuses no charmoso e aconchegante restaurante. Quando estávamos, todos, à mesa a degustar do quente e caro achocolatado, Del se aproximou e pediu desculpas à Alex pelas possíveis ofensas provocadas e pelos desentendimentos desencadeados. Alex, imediatamente acolheu Del no seu sublime gesto. Aquela cena emocionou todo o grupo, pois sabíamos que a depender do que rolasse a viagem poderia ser uma coisa bacana ou uma coisa "pesada". Sabíamos da importância e do que representava aquele pedido de desculpas e o aceite. Em dado momento, nós nos olhamos e nos percebemos profundamente tocados. Posteriormente, Alex confidenciou que precisava ter um momento só, mas jamais iria cruzar Ushuaia sozinho. O incrível disso tudo foram os gestos dessas duas figuras. Alex, por ter mantido o sentido de grupo e não desistido dele (o grupo) e Del, justamente "o palhaço" da galera, por ter tido o brio de pedir desculpas. Realmente almas elevadas.
Toda aquela situação de rodopios do grupo me fez lembrar de um filme chamado "Crash, no limite", que mostra as diferentes realidades dos personagens a depender do ponto de vista que se aborde. Daí pensei que o importante mesmo seria buscar ao máximo as várias perspectivas, ou seja, em outras palavras, ser compreensivo, sobretudo no que diz respeito às relações.
Saímos do restaurante nutridos, aquecidos e de "almas lavadas". Pegamos a estrada. Algumas poucas subidas, mas a boa parte foi só descida. O problema mesmo foi o frio, porque ao descer não fazíamos esforço (que ajudava a gente a esquentar). Estávamos já próximos e já podíamos avistar o portal de entrada da cidade Ushuaia. Uma emoção incomensurável nos tomou. Foi uma alegria intensa. Lembramos dos nossos esforços, das nossas labutas, das dificuldades, de tudo que passamos, dos nossos parceiros que nos aguardavam no hostel, dos sabores e dessabores dessa aventura e tivemos a certeza de que tudo valeu, valeu a pena porque durante toda aventura nossa alma não foi pequena (parafraseando o poeta Fernando Pessoa).
Com todas as certezas, aprendemos muito e produzimos vários sentidos nessas experiências.
Um desses sentidos foi compreender que a aventura ciclística não apenas nos possibilitou ultrapassar os nossos limites, mas sobretudo reconhecer os nossos limites e também os limites e imperfeições do próximo (uma grande lição que o Arestides legou para gente).
Depois de alguns dias de repouso em Ushuaia, nos despedimos de tudo aquilo na magia do período de Páscoa e com direito a neve.
E agora, aqui, nas lembranças, recordações, no reviver... Fico a pensar o quanto Arestides foi nosso farol e motivo de orgulho, o quanto Chico foi fiel e parceiro, o quanto Raffaello foi sóbrio e soube conviver no meio das diferenças, o quanto Nilo foi amigo e sábio, o quanto Paulo foi seguro e parceiro, o quanto Del foi alegre e companheiro, o quanto Alex foi cuidadoso e prestativo, o quanto pude aprender com todos eles, como aquilo...
Mas a pergunta que não queria se calar e que passava por todos nós era "o que estou fazendo aqui!?" Esta pergunta tão comum para gente, sobretudo nos momentos mais difíceis levava a outra:  "o que movem esses ciclistas ?!" 
Responda você, mas responda experimentando.








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